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A vida precisa de tempero, e de cor!
Coitadinha.
A Dona Mila era a funcionária da residência universitária onde eu vivi durante parte da minha vida académica.
Ela era uma senhora nos seus quarentas e muitos, sempre toda arranjada, de saia e de saltos, que usava mesmo para fazer a maior parte das tarefas (limpezas) que o seu trabalho implicava. Ela até tinha os sapatos do trabalho. (Uns tamancos bordeaux que guardava num canto do quarto da roupa.) E carregava aquele ar tão sofredor...
Coitadinha.
Não era raro estarmos a chegar à porta da casa de banho e podíamos encontrá-la no corredor a limpar o chão (ou outra coisa qualquer), enquanto murmurava continuamente "Ai Deus, ai, ai...Vida...ai, ai, ai, ai..., Deus...ai, ai, ai..." (e, não raras vezes aumentava o volume para ter a certeza que a ouvíamos).
Coitadinha.
Quando falávamos com ela tratava-nos a todas por "filha", "ai filha", mas tinha sempre aquele semblante pesado e voz quase arrastada de dor (que fazia questão) de imprimir no que dizia (nem que fosse "não chegaram ainda os lençóis lavados, filha").
Coitadinha.
Ela tinha ficado viúva muito jovem e com duas crianças pequenas para cuidar. O marido era um excelente homem (tenho ideia de que todos os maridos que morrem novos são sempre excelentes) e deixou-a cedo, agruras da vida.
Coitadinha.
A vida não era fácil. Todos os dias tinha de fazer uma longa viagem de autocarro para chegar àquele trabalho, que nem gostava, e que nem fazia com primor, porque tinha de sustentar a prole (neste tempo já em idade adulta, bem entendido).
Coitadinha.
E já lhe custava um bocado. Doiam-lhe as costas. Era do trabalho, maldito trabalho. Lá de vez em quando metia uns dias de baixa, ficava mais doente e tinha mesmo de ser..."Ai, vida, ai, ai, ai..."
Coitadinha.
Nunca a vi rir com vontade ou abandonar aquele ar de sofredora, de vítima da vida, que só afastava (ainda mais) dela as pessoas e as coisas boas que estas lhe pudessem trazer.
Coitadinha.
Não conseguia ver além do mal que lhe aconteceu, ficou lá parada, encurralada e dexou que isso definisse todo o resto de uma vida que ainda tinha para viver.
Pois, coitadinha...
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